Por Antonio Pele
Translated by Débora Sol Freire (PUC-Rio)
Repensar a Pedagogia do Oprimido (PO) de Paulo Freire dentro de uma perspectiva teórica crítica é tanto desafiador quanto produtivo. É desafiador na medida em que questiona uma interpretação potencialmente estática e meramente teórica/histórica das ideias de Freire no livro. É produtivo na medida em que estimula o desenvolvimento de uma práxis crítica e política, seguindo, assim, o objetivo do seminário Crítica 13/13 deste ano, que é o de investigar como usar este texto (e outros) para construir hoje uma “zone à défendre”. É ainda mais produtivo, uma vez que o livro coloca a educação no centro da luta crítica e política. Esta era uma questão política urgente no Brasil nos anos 60, assim como é hoje com o atual governo protofascista. Consequentemente, meu intuito não é avançar com uma nova exegese do texto de Freire, mas valer-se de alguns dos seus insights e interpretá-los como úteis para as lutas críticas/políticas agora. Na verdade, era o que Paulo Freire estava fazendo na PO. Ele não estava realmente interessado em apoiar-se em uma base epistemológica coerente, mas usar suas ideias e, por exemplo, os argumentos de outros pensadores para suas próprias lutas políticas em seu tempo. Na PO, Freire citou e baseou-se em pensadores cristãos humanistas/personalistas, tais como Emmanuel Mounier, Alceu Amoroso Lima, Jacques Maritain, Teilard de Chardin e autores/militantes críticos, tais como Camillo Torres, Louis Althusser, Eric Fromm e Karl Marx.
Os debates sobre a PO resultam de um trabalho educacional que Paulo Freire realizou no Brasil, especialmente no Serviço Social da Indústria (Sesi), na região de Pernambuco (1947-1957), em particular com a criação do Círculos de Pais e Professores. A abordagem dialógica e horizontal no processo de educação foi colocada em prática para fomentar não apenas a alfabetização ao longo do país, mas também e primordialmente para tornar o povo brasileiro em um verdadeiro sujeito político. Como a maioria dos brasileiros e pensadores políticos do final dos anos 50 e 60, Paulo Freire compartilhava as visões dos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), tais como Álvaro Vieira Pinto e Guerreiro Ramos. De acordo com eles, o Brasil estava em um processo de transição de um mundo antigo para um moderno. Consequentemente, ao longo deste processo e de acordo com Freire, a questão urgente não estava apenas relacionada a aspectos econômicos, mas também em tornar o povo brasileiro em atores ativos e conscientes do desenvolvimento do Brasil (Haddad, p. 53-54). Para tanto, a educação desempenhou um papel crucial na medida em que tanto os atores quanto as lutas tiveram que ser redefinidos para evitar a reprodução da relação oprimido/opressor e tornar a educação uma “prática da liberdade”.
Dois deslocamentos críticos
O primeiro aspecto que eu gostaria de iluminar é a relação entre teoria e prática na PO. De um lado, parece que a práxis crítica é mais relevante do que a teoria. A palavra “práxis” aparece muitas vezes na PO e o texto é amplamente dedicado a trazer e preparar uma revolução tanto em termos políticos quanto culturais. Como exemplo, o oprimido ganha a sua libertação não “por acaso, mas pela práxis de sua busca” e “pelo reconhecimento da necessidade de lutar por ela” (p. 45). Ademais, “não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo” (p. 87). “Apenas no encontro das pessoas com os líderes revolucionários – na sua comunhão, na sua práxis – pode esta teoria ser construída” (p. 183). Contudo, ainda que a práxis sustente todo o discurso de Paulo Freire, a teoria também atua como uma parte importante, ou, pelo menos, o conhecimento, a observação, a não práxis, o não diálogo, e mesmo o silêncio são fundamentais para informar um comportamento livre e não opressivo nos processos políticos/educacionais. Por exemplo, quando Paulo Freire descreve que os educadores não podem impor o seu conhecimento. Eles devem primeiro observar o novo universo no qual estão inseridos, como “observadores compreensivos”, para entender as necessidades e valores de uma determinada população (p. 109). Em um primeiro estágio, eles precisam abster-se da ação educativa. Além disso, a libertação do oprimido busca primeiro desconstruir o que as pessoas pensam sobre elas mesmas e sobre os outros. As mudanças na forma de pensar estão no centro da pedagogia Freireana. No capítulo 4 da PO, Paulo Freire desenha um gráfico em uma nota de rodapé explicando e diferenciando a teoria da ação revolucionária da teoria da ação opressora (p. 135-36). Ainda que a práxis crítica esteja guiando o trabalho de Paulo Freire, ele também conta profundamente com a teoria para informar a primeira. Contudo, a abordagem que interessa aqui não é a relação entre a teoria crítica e a práxis crítica, mas o deslocamento que ambas produzem. O que está em jogo na PO não é a questão da relevância da práxis vis à vis teoria crítica (e vice-versa), mas a questão da constituição dos sujeitos críticos. Teoria e práxis são usadas para alcançar esta meta e não para definir aspectos da relação dialética entre elas. O antigo indivíduo oprimido – agora informado pela metodologia educacional Freireana – se torna um sujeito político e crítico que não está mais passivo sobre a relação de poder. A luta e a violência são meios apropriados para alcançar a humanização e a libertação do indivíduo. A PO objetiva primeiro a formação contínua do comportamento crítico e político. Como disse uma vez um antigo estudante de Freire, Antonio Ferreira, no encerramento de um curso em Angicos (Brasil/Rio Grande do Norte): “em outros tempos, nós éramos massas, hoje já não somos massas, estamos sendo povo” (Haddad, p. 71). Sujeitos críticos estão sendo constituídos e homens são seres que estão fazendo parte da sua própria constituição.
O segundo aspecto que eu gostaria de iluminar está relacionado ao objeto de estudo de Paulo Freire, que é a educação. Tradicionalmente, a teoria crítica e mesmo parte da filosofia (política) têm sido confrontada com a seguinte alternativa clássica: ou diagnostica e muda as relações de poder para produzir mudanças sociais e individuais ou traz e molda novas condutas éticas/individuais para redefinir essas relações de poder e alcançar uma sociedade justa. Na PO, esses dois aspectos estão fundidos dentro de um mesmo campo, a educação. As mudanças críticas e políticas afetam as subjetividades envolvidas, os oprimidos, mas também os opressores e os “líderes revolucionários” que tentam impor suas visões. Simultaneamente, tais mudanças também devem afetar, no longo prazo, as relações sociais globais e trazer novas formas de existência coletiva e individual. Freire identificou na educação um campo estratégico onde o antigo opressor/oprimido e as antigas subjetividades/realidades podem colapsar e dar luz à constituição de existências humanizadas e críticas. Não é uma coincidência que o governo brasileiro protofascista contemporâneo tenha não apenas ridicularizado a herança cultural de Paulo Freire, mas também atacado (com duras medidas econômicas) fundos públicos da educação superior. Nesses tempos sombrios, no Brasil e em todo lugar, educação em geral e universidades em particular se tornaram não apenas o alvo da ganância neoliberal, mas também locais que intensificam (e mesmo moldam) as lutas políticas que estão acontecendo fora dos seus muros. Como educadores e estudantes, de acordo com as palavras de Paulo Freire, nós devemos manter “nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar” (p. 40).
Metodologia: Otimismo Prudente
O último aspecto que eu gostaria de comentar está relacionado com a metodologia que cobre o pensamento de Paulo Freire na PO. De um lado, e contra os impulsos necrofílicos dos opressores, amor, comunhão, felicidade, humildade, esperança, são emoções que estão voltadas para as categorias políticas. Elas são estrategicamente mobilizadas para alcançar o objetivo subjacente da PO. Por exemplo, a luta do oprimido “irá, na verdade, constituir um ato de amor” (p. 45). “Não existe, tampouco, diálogo sem esperança. A esperança está na própria essência da imperfeição dos homens” (p.91). A menção de Freire “ao trabalho emancipado que dá a alegria de viver” (p. 91). A “revolução autêntica” só pode ser realizada através da comunhão do povo com seus líderes (p. 130). Tais emoções claramente demonstram a abordagem otimista de Paulo Freire e a influência da teoria da Libertação no seu pensamento. Tais emoções são mobilizadas contra o desespero das massas fomentado pelas tendências sadistas e necrófilas dos opressores. Graças a esse otimismo, progresso pode ser alcançado; humanização e libertação são possíveis. Contudo, as emoções não representam uma perspectiva ingênua, uma vez que estão arraigadas a uma abordagem realista e prudente/histórica. De fato, e particularmente no Capítulo 3 da PO, Freire define a metodologia dialógica de sua educação. Ele primeiro insiste em identificar os “universos temáticos” e os “temas geradores”. Ele, então, mostra como “situações-limite” podem primeiro gerar medo e desesperança entre os oprimidos. Mas, então, através da ação crítica, e um olhar preciso acerca da realidade particular e histórica, situações-limite podem ser superadas (através dos atos-limite), esperança e confiança podem ser estabelecidas (p. 99-100). Em cada momento, e através da transcendência das situações-limite, encontra-se o inédito viável (p. 102). Há aqui uma metodologia progressiva que está constantemente ciente da possibilidade verdadeira de libertar o oprimido por/através (d)eles mesmos, bem como está ciente dos diferentes momentos e estágios onde essa libertação poderia reproduzir o papel do opressor. Contudo, o risco de reprodução do papel do opressor não é um obstáculo para a libertação do oprimido. É um risco real, mas, de forma alguma, condiciona a possibilidade de constituir sujeitos críticos/políticos. De acordo com a proposta de Bernard Harcourt, também há no esforço crítico de Paulo Freire, uma vigilância constante em desvendar ilusões específicas que sustentam nossas relações contemporâneas de poder, e um reexame das suas próprias conclusões críticas. Paulo Freire também traz um “otimismo prudente”, uma vez que as estratégias políticas podem ser mobilizadas agora, através de um entendimento preciso do momento histórico. Tudo isso depende da nossa coragem e nosso amor para levar adiante esta luta.
Referências
Paulo Freire, Pedagogy of the Oppressed, trans. Myra Bergman Ramos, New-York: Bloomsbury, 2012.
Sérgio Haddad, O Educador. Um Perfil de Paulo Freire, São Paulo: Todavia, 2019.