Alessandra Vannucci | Augusto Boal. O Teatro como ferramenta para Criar uma Comunidade (Versão em Português)

Por Alessandra Vannucci

A fama do Boal consagrou-se internacionalmente na década de 70, com o livro Teatro do Oprimido e outras estéticas políticas, traduzido em várias línguas, escrito quando o diretor trilhava caminhos experimentais na prática de um teatro que tentava superar modalidades características de sua produção engajada da década de 60. Ao invés que como “teatro político” Boal começou a entender seu trabalho como uma multiplicação de ferramentas à disposição da luta política. A escrita de livros e peças de forte cunho autobiográfico (como Torquemada, 1971) acionou a opção por táticas não violentas de luta que surgiram, inicialmente, neste momento da vida do Boal, como alternativas à pegada em armas contra regimes totalitários, em primeiro lugar contra a ditadura militar que o aprisionou, torturou e exilou em 1971. Ao invés que um repertório de obras, Boal começou a acumular um acervo de técnicas; propriamente, um arsenal de armas teatrais que poderiam ser usados por classes e grupos oprimidos. O arsenal do Teatro do Oprimido foi agregando novas técnicas e variantes durante o exílio do Boal em países da América Latina e da Europa, em contato com diversos modos de opressão e em diálogo com diversas práticas pedagógicas e propostas conceituais contemporâneas. Entre estas, foi fundamental o diálogo do Boal com a Pedagogia dos Oprimidos do compatriota, também exilado, Paulo Freire, publicado em 1970 e traduzido em várias línguas. Assim como a educação freiriana para a liberdade, a metodologia do Boal se fundamenta na compreensão de que processos de socialização humana (tais como instrução, informação, institucionalização) incorporam condutas induzidas ou impostas por dispositivos hegemônicos (tais como escola, mídia, estado) que tendem a inibir a subjetividade e a mecanizar os corpos. Sendo a sociedade por si só opressora, é essencial que pessoas oprimidas recuperem sua autonomia e humanidade para se libertarem.  A arte surge como um possível remédio, melhor, um antidoto capaz de despertar a vontade de subjetivação e participação do cidadão em práticas de convivência que valorizem a busca por novas formas de aprendizagem e transmissão do saber. A luta de libertação tem por meio a emancipação da potência estética de cada pessoa, para que se subjetive (e não mais se sujeite); tem por fim a mudança da realidade (não a arte em si). Boal declara que cidadão não é aquele que vive na cidade, mas aquele que a transforma; artista é todo e qualquer cidadão que, partilhando os seus meios de produção, faz da arte um instrumento de cidadania. O arsenal de técnicas que Boal veio dotando, em seus livros sucessivos, de um arcabouço teórico indissolúvel da prática libertária que o alimenta, é uma plataforma para a exploração concreta de utopias.

O método de fato é aplicado por milhões de pessoas nos cinco continentes como ferramenta de luta política e de transformação de cenários sociais. No panorama das artes, destaca-se por ser metodologia inclusiva, acessível a qualquer pessoa sem nenhum pré-requisito, apropriada por comunidades militantes e estudada nas universidades; o destaque, porém diz respeito às suas prerrogativas pedagógicas, muito mais que ao seu diferencial estético. Neste campo, a consagração do Boal coincidiu com certa cristalização como objeto de estudo “datado” aos seus feitos no teatro político da década de 60. Entretanto, nas décadas sucessivas e coincidindo com seu longo exílio, o método evoluiu articulando-se com a reflexão estética a ele contemporânea, marcada pela insurgência (ou ressurgimento) de um pensamento inconformado com a ordem vigente. Pensamos por um lado, na experiência de artistas como Helio Oiticica e Richard Schecner no ambiente da contra-cultura nova-iorquina (onde Boal encontrou o primeiro em 1971 e frequentou o segundo ao longo das décadas seguintes) que valorizam, mais que o produto-obra, os processos de interação humana provocados pela sua execução (performance) de tal modo que a relação perceptiva e cognitiva entre criadores e espectadores se torna mais essencial do que a obra em si. Tal entendimento amplia o campo das artes plásticas e cênicas em um regime estético que podemos (com Nicholas Bourriaud) descrever como “relacional”, ou seja, capaz de gerar novas formas de subjetivação, de relação social e de comunidade. Pensamos também no resgate de experiências sinestésicas que haviam sido drasticamente reduzidas com a afirmação da cultura textocentrica na modernidade, seja no teatro como em outras artes; redução que do ponto de vista atual pode ser tachada de “desvio epistemológico” (com Jacques Rancière). Estes dois pontos, o deslocamento do interessa da obra para a relação por ela provocada (1) e a expansão da ação teatral ao campo sinestésico, invocando um regime sensível acessível a qualquer pessoa, mesmo iletrada (2) são características que destacam o percurso artístico do Boal no exílio e após o seu retorno ao Brasil em 1986. Além disso Boal, durante e após sua permanência na França na década de 80, possivelmente sintonizado com o pensamento estruturalista, aprofundou sua reflexão teórico-prática sobre as funções da arte e dos artistas na sociedade do espetáculo. No livro Estética do Oprimido (publicado no Brasil em 2009 e quase contemporaneamente em inglês, francês e italiano) Boal aborda os “regimes de controle” (sistema financeiro, midiático, econômico) que descreve como interconexos e à serviço do império. Fazendo da arte uma indústria, o império invade não mais territórios, mas cérebros; monopoliza desejos e inibe a criatividade dos indivíduos, com objetivo de degrada-los a consumidores. Mesmo valendo o alerta da escola de Frankfurt (especialmente Horkeimer/Adorno) quanto ao uso que regimes totalitários (o fascismo, como a indústria cultural) fazem das artes miméticas, Boal não se alinha à negatividade adorniana; vale dizer, não teoriza o fim da arte, uma vez reduzida a mercadoria. Pelo contrário, afirma a necessidade de reivindicar a arte como linguagem ainda capaz de gerar comunidade e de subverter estados de opressão. A proposta é urgentemente autobiográfica, já que explica a opção do artista pela arte como um modo de militância política e sua renúncia ao profissionalismo artístico e às prerrogativas da autoria, que resulta ser exclusiva quando depende do mercado. Mas a proposta também tem impacto teórico, já que redefine a função dos artistas e revigora as relações entre arte e utopia. Como Boal dialoga indiretamente com filósofos que pensam tais relações (como Foucault, Guy Débord, Hakim Bay, Rancière) com a diferença dele ser um artista? Como Boal se põe em relação a artistas cujo trabalho foca tais relações (como Artaud, Brecht) com a diferença dele ser latino-americano? E ainda, qual o diferencial da participação do Boal no movimento de educação popular latino-americana (com Paulo Freire, Darcy Ribeiro)? Tentando responder, vou repropor algumas ideias do Boal que se põem ao mesmo tempo como técnicas de criação e como conceitos que revolucionam convenções estéticas consolidadas.

Desde suas primeiras experiências de teatro “fora dos teatros”, ou seja, à margem dos edifícios dados ao consumo de espetáculos, Boal rompe com a ideia de que alguém possa estar excluído da autoria criativa e reduzido em sua experiência estética. Não se trata apenas de estabelecer, enquanto artista, novas funções para o espectador, mas de eliminar o conceito de “espectador” como alguém coagido à passividade e reduzido à mera função contemplativa pela convencional separação entre palco e plateia que, nos edifícios teatrais, já afasta o público da função criadora. Se trata de reivindicar uma nova partilha estética: não haverá então, “artistas” e não artistas” ou seja, atores e espectadores mas sim, um coletivo de espect-atores. Incorporando o sonho de Artaud para um teatro “sem espectadores” (que evidentemente não significa uma plateia de cadeiras vazias) o ritual/jogo que transforma ator em personagem, realidade em ficção, inclui todos os participantes e destitui os artistas da posse exclusiva sobre autoria. No jogo, como Boal define, assim como no ritual (descrito por antropólogos que estudam comportamentos espetaculares, como Turner e Schecner), o modo de atuação (performance) dos participantes não é definido por conteúdos dados (mesmo que haja uma liturgia ou as “regras” do jogo) mas pelo ato de “jogar-se” dos jogadores. Esta experiência de entrar-em-jogo transforma não somente o jogo, como o próprio jogador. A máquina fechada e implacável do drama (onde alguém oprimido tenta em vão modificar a situação que o oprime) se abre; a peça experimenta e absorve a transformação que provoca; sua escrita se dá em cena, através de seguidas variantes nas quais a criatividade de cada participante se expressa partilhando a autoria daquele encontro. É o que acontece na técnica do Teatro-Forum (proposta no Peru em 1973, quando Boal se encontrava engajado em campanha de alfabetização popular diretamente inspirada na pedagogia freiriana). Na prática, após uma primeira parte na qual atores encenam um drama premeditado, há uma segunda parte na qual espectadores entram em cena nos panos de um ou outro personagem, com poder de modificar a sua atuação para tentar resistir ou até mesmo vencer as opressões que os participantes percebem naquele contexto. Ao entrar em cena, cada espectador ensaia sua própria potência transformadora, ou seja, percebe-se capaz de mudar a realidade e não somente analisa-la, julgá-la e imaginar mudanças ou, pelo contrário, aceita-la como está e viver nela passivamente. A força de transformação das soluções propostas no jogo teatral é probatória e pode ser transferida à realidade; no entanto, a obra não pretende mudar diretamente a realidade nem dar conselhos ou ensinar outros a fazê-lo. Neste sentido especialmente, o jogo resulta estruturado por uma intenção pedagógica freiriana. Pois, é o próprio público de participantes que se interroga e decodifica aquela realidade em ação, analisando as condições reais nas quais se dá e nas quais nem sempre a opressão está visível; podendo apresentar contradições mesmo quando se torna evidente. Pois (como apontado por Freire, na esteira da reflexão descolonial de Franz Fanon) o oprimido interioriza seu opressor e vive uma dinâmica na qual pode exercer por sua vez opressão; reconhecer tal duplicidade é passagem indispensável de qualquer processo de emancipação. No Teatro-Forum, a reflexão coletiva é conduzida por perguntas maiêuticas por parte do “coringa”, cuja função naquela assembleia repercute a relação horizontal proposta por Freire para o docente entre discentes:  trata-se de estimular a aprendizagem como percurso comum e interativo, no qual cada um aprende dos e com outros. Tal interatividade, transferida à assembleia teatral, motiva a transitividade entre palco e plateia cancelando a distância entre “artistas” e “não artistas” – já que cada participante age alternadamente como ator/espectador. O fato que um espect-ator entre em cena desloca o discurso no plano da ação: caso reconheça uma opressão, o que cada um faria para superá-la? Não necessariamente consegue, mas possivelmente se aproxima, somando sua intervenção com a de outros espect-atoresem um processo de criação/transformação através de correições sucessivas.  Assim, a técnica se propõe como método de aprendizagem coletiva: um movimento cognitivo não redutível a mera didática. No livro Teatro Legislativo, Boal esclarece ser seu objetivo (citando Freire) uma “modalidade política transitiva que proponha o diálogo, a interação, a troca”. É evidente contudo, a procedência do conceito dialético proposto por Bertolt Brecht nas peças de aprendizagem (leherstrucke), escritas como roteiros para intervenções em sindicatos e escolas, visando estimular a participação política sem se utilizar de meios demagógicos e panfletários. A proposta brechtiana (no âmbito do agit-prop, na Alemanha da década de 20) visava organizar as massas através da multiplicação/apropriação dos meios de produção artística. Na prática brechtiana, trabalhadores são ativados enquanto autores/produtores de “representações do real” para que aprendam a analisar um contexto de opressão de diversos pontos de vista e tomem consciência das mudanças possíveis; já Boal (dando mais um passo) propõe que espectadores entrem em cena e coloquem as mudanças possíveis à prova. Isso pode estar acontecendo em escolas, teatros, sindicatos etc. Daí a gigantesca expansão da técnica.

Como dissemos, a opção de Boal por compartilhar autoria intende valorizar o processo relacional, mais que a obra-fim; ou seja, fica evidente a vontade de provocar relações que encetem processos de subjetivação, opondo-se aos procedimentos que provocam separação e sujeição, seja em instituições organizadas como em qualquer contexto assemblear. Diversamente de outras experiências “relacionais” nas artes contemporâneas, que para se legitimarem enquanto arte dependem do sistema autoral e da exibição em lugares canônicos, como museus e galerias, nas práticas acima citadas, cidadãos se fazem artistas pelo próprio ato de atuar/criar, independente das hierarquias eventualmente sugeridas por assinaturas ou pela fama derivada. Por si só, a prática artística inaugura espaços radicalmente comuns, ou seja, convida para reunião de uma comunidade capaz de propiciar experiências de emancipação das formas de controle exercidas pelo Estado e, em última instância, pela própria sociedade. Na técnica do Teatro Legislativo, desenvolvida por Boal a partir de 1992 na Câmera Municipal do Rio de Janeiro (após o seu retorno em 1986, a convite de Darcy Ribeiro, Secretário de Cultura) instala-se, durante uma sessão de Teatro-Fórum, uma mesa de verdadeiros assessores jurídicos que elabora propostas de lei a partir das intervenções performáticas dos espectadores. O jogo reproduz o arcabouço legal, com a diferença de devolver a palavra para o cidadão-artista que, de fato, legisla, sem delegar este poder a ninguém nem se submeter aos entraves burocráticos que viciam a democracia representativa. A sequência de ações políticas sucessivas, interagindo com as instituições democráticas reais, visam garantir continuidade à luta para aqueles objetivos, podendo chegar a alcançá-los, caso a lei proposta pela comunidade durante a sessão teatral, seja enfim aprovada nas instâncias apropriadas do poder legislativo. Neste caso, o coletivo de espect-atoresforma uma TAZ, uma “zona autônoma temporária” (citando os situacionistas e suas táticas libertárias, como Débord e Hakim Bey) em que a comunidade produz sua análise das disciplinas em vigor e propõe mudanças na forma de ações eficazes que instigam a desconstrução e reinvenção de normas que legitimem outras formas de ver e viver o mundo. Através da relação que provoca e estrutura pedagogicamente, a arte reinventa o mundo – pois se propõe como dimensão perceptiva paralela marcada por características ideais de convivência tais como isonomia, livre-expressão, não-violência; dimensão plenamente participativa da qual a assembleia teatral é concreta manifestação. Entende-se a pujança utópica desta ideia (que se manteve como prática do Mandato Político Teatral do Boal, produzindo um grande número de leis e se mantém até hoje, mesmo em mudadas condições) na plena inserção do Boal no vasto movimento de educação política popular instalado no Brasil pela Constituição de 1988. Nela reside o diferencial latino-americano do Boal (sua capacidade de ser “novo”, no sentido de ousado e lúdico ao mesmo tempo) na atualização de propostas do movimento libertário de 68, trinta anos mais tarde e em uma nação que viveu 68 muito mais como luta de resistência ao regime tirânico instalado sobre corpos, do que como libertação do imaginário. Empregando um conceito lançado por Foucault em 1968, ao definir o ambiente na qual a imaginação tomaria o poder, a assembleia revolucionária seria “utópica” não no sentido de algo inexistente, mas de algo “concreto para além de todos os lugares reais, embora efetivamente localizável”. A assembleia reinventa o espaço real em uma dimensão perceptiva onde a realidade se dá como é e, contemporaneamente, como poderia ser: é um antídoto, uma “contra localização” ou heterotopia (como a batiza Foucault em diálogo com os situacionistas e com Lefevbre) ou seja uma “utopia efetivamente realizada, na qual as normas reais são ao mesmo tempo representadas, contestadas e subvertidas”. Me parece que a assembleia teatral legislativa proposta por Boal é uma possível manifestação prática desta proposta de democracia que buscando realizar (mesmo que de modo efêmero e experiencial) a utopia da participação universal, recusa o regime representativo (nas artes, como na política). Não devemos esquecer a insistente paixão com que Boal descreve o surgimento da polis, com tais características de assembleia universalmente participativa (na agorá grega) como algo paralelo e vinculado ao surgimento do teatro (cuja etimologia do grego sugere um lugar teatron para que a comunidade “se veja”). Diremos então (com Rancière, no Desentendimento) que a própria democracia em sua origem é uma heterotopia pois prevê e permite a irrupção da multidão (oi polloi) na assembleia pública (agorá), dando visibilidade ao que era invisível, voz ao que não era ouvido. O deslocamento dos corpos no espaço urbano aparelhado (até mesmo arquitetonicamente) pelas hierarquias hegemônicas subverte o fluxo ordenado da representação do poder agenciando a tomada da palavra por parte de quem não tem parte no comum: dos que são subalternos, oprimidos, escravizados, condenados ao silêncio e a passividade; este deslocamento de corpos com tomada da palavra é ato fundador da democracia. E como não reconhecer uma sua aplicação lúdica e utópica no deslocamento dos espect-atoresque entram em cena no Teatro-Forum?

Pois, mais do que se perguntar como o oprimido pode falar (reformulando, para concluir, a pergunta da Gayatri Spivak, 1992) o Teatro-Forum indaga como pode ser ouvido, sem recorrer a violência cujo resultado pode ser o de provocar novas hierarquias tirânicas. A “ficção verdadeira” que o teatro oferece é uma resposta, não só do Boal.  Rancière sublinha o poder cognitivo exercido pelo deslocamento dos sem parte na agorá, que desvela aos olhos de todos o desentendimento, a discórdia na base dos regimes de opressão e denuncia sua total ausência de fundamentos. Independentemente dos resultados políticos que alcança, o deslocamento então representa algo irrepresentável, ou seja, a mera contingência de qualquer ordem social. É a cena da verdade (no sentido do “dizer verdadeiro” dado por Foucault no Governo de si e dos outros) da qual são atores as vítimas quando colocam em risco sua própria existência para exercer o direito de parresia ou “fala franca” (dire vrai) diante do tirano que não pode impedir tal manifestação mesmo que seja a última, como no caso de Antigone. A fala franca é uma “retórica dramática do discurso” que transforma inexoravelmente quem o pronuncia, assim como quem o ouve: pois irrompe na cena pública, subverte os discursos estabelecidos e visualiza as relações de força nos corpos, colocando todos os presentes em estado de alerta e risco. É algo diferente do ato de palavra praticado pelo poder em suas representações litúrgicas (speech act do tipo:“a sessão está aberta”, “eu te batizo”) cujos efeitos são previsíveis; ao invés disso, a fala francatem efeitos imprevisíveis, como a fala de Cordélia que estabelece um pacto inaudito entre a última filha e o todo poderoso Rei/pai (“a sua verdade seja então seu dote” ele responde, mostrando não ter alternativa a não ser aceitar e escutar aquela que menos tem palavra). O ato expande o corpo de quem o realiza: amplifica a sua voz: faz com que seja impossível não o ouvir; neste sentido, o corpo adquire um comportamento perfomativo (dança, canta, veste máscaras ou adota posturas eloquentes): torna-se (mesmo que por um instante só) um corpo espetacular. Foucault exemplifica o modo efêmero e espetacular desta atuação no comportamento do filósofo cínico que ao agir seu protesto em público “faz de seu corpo um teatro da verdade” mesmo que isso lhe custe imediatamente a vida. Esta teatralização do corpo tem outro objetivo: o de potencializar e transfigurar o sentido daquele protesto no espaço político – por isso Foucault convoca a magnífica imagem de um corp utopique. Mesmo que se valha de procedimentos teatrais trata-se, evidentemente, de mais do que uma atitude artística, mas de uma atitude que resgatando a que talvez seja a essência do teatro (um espelho para que todos os participantes se observem: teatron), demanda a refundação de uma comunidade. A metodologia do Boal e seu longo debate filosófico sobre as funções da arte e dos artistas (para que serve, a quem serve o teatro?) parece experimentar na prática esta reconquista da essência pedagógica (no sentido freiriano) das artes miméticas, como antídoto cognitivo ao uso manipulador que delas fazem os regimes hegemônicos. O teatro como ação cultural para a liberdade. O teatro como ferramenta de emancipação da comunidade. A capilaridade da rede mundial do TO, sua presença expansiva incomparável a qualquer outra metodologia teatral que possa reunir um ou outro grupo artístico expressivo, em algum momento da história recente pareceu realizar a que Rancière (no Espectador emancipado) preconizava como um estágio utópico de participação onde “os diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros, demandando espectadores que são interpretes ativos, se apropriam das histórias e escrevem suas próprias histórias a partir daquelas”.